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O Ser Humano - Fulvio De Vita

Conferência de abertura: A visão sobre o Ser Humano.

Fulvio de Vita[1]
Equipa Coordenadora Mundial do Centro Mundial de Estudos Humanistas.

 

Uma nova civilização está a nascer.
Por primeira vez uma civilização mundial.
Como no início de toda a nova civilização, esta ainda não aparece clara e definida. É antes um sinal fugaz, um vento ligeiro, uma sensibilidade que está a crescer, que ainda tem um sabor primitivo, quase ingénuo, como o balbuceio duma criança recém-nascida.

Mas as mulheres e homens valentes e sensíveis sabem que este é o momento, que os próximos anos serão fundamentais e assumem apartir de agora a tarefa de falar nisso abertamente, sem medos ou inúteis prejuízos.

No transcurso de centenas de milhares de anos de evolução humana, desde a pré-história até hoje, encontramos numerosas concepções acerca do cosmos, do ser humano, da natureza, da divindade. Algumas destas concepções permaneceram durante séculos, outras desapareceream porque não eram úeis a nível social e pessoal, outras se transformaram. Mas apenas em poucos momentos encontramos concepções cosmológicas nas quais a existência do ser humano concreto e cotidiano tenha tido uma posição central.

As diiferentes concepções sobre a colocação do ser humano no cosmos e a própria concepção do “ser humano” tiveram enormes consequências na evolução e organização de toda a sociedade. Se o nosso interesse é assentar as bases duma nova civilização, será impriscindível rever a nossa concepção actual para que esta reflicta nos tantos modos de ser-no-mundo e nos valores do novo momento histórico.

Nas origens, encontramos um ser humano à mercê dos fenómenos naturais e, enquanto tal, a imagem que tem de si mesmo é a dum ser submetido ao ambiente natural, vítima dos acontecimentos e das potentes entidades que os governam.

Vemos com frequência um ser humano submetido às leis divinas, nas quais ele é um simples produto de vontades alheias à sua existência cotidiana. Com o tempo, as divindades se encarnaram em poderes reais de descendência divina, ou em castas sacerdotais, cujo único interesse era a de manter o status quo, enquanto a autonomia e a liberdade do ser humano estavam limitadas já apartir da imagem que cada um tinha da própria existência. Por outra parte, é interessante observar que em alguns mitos antigos, como por exemplo os de Gilgamesh e Prometeu, o homem se rebela frente aos deuses em busca duma nova condição.

No oriente, o Budismo original não faz referência a “verdades” pré-constituídas, mas sim à existência concreta do ser humano. Enunciando as Quatro Nobres Verdades – o sofrimento, a origem do sofrimento, a cessação do sofrimento e o caminho que leva à cessação do sofrimento – o Budismo dá lugar a um momento muito interessante para o desenvolvimento daquela civilização.

Na Europa, a passagem da Idade Média ao Renascimento mostra um claro exemplo de como a concepção do ser humano mudou radicalmente com evidentes consequências sociais.

Para o cristão Medieval, a terra é um lugar de pecado e sofrimento, um vale de lágrimas na qual a humanidaed foi atirada por culpa de Adão, e do qual é desejável fugir. O homem em si não é nada e nada pode fazer por si só. A história não é a memória dos homens, povos, de civilizações, mas sim o caminho da expiação que do pecado original leva à redenção. A Terra está imóvel no centro do universo e a organização social está em consonância com esta visão cosmológica fechada e hierárquica.[2]

Os humanistas invertem esta visão e à degradação da natureza do homem contrapõem uma exaltação do homem na sua totalidade de ser físico e espiritual. A fins do século XV, o homem adquire uma dimensão religiosa e chega a assumir um significado cósmico. Diz Marsilio Ficino: “ O género humano no seu conjunto tende a transformar-se no todo, porque vive a vida do todo. Portanto, tinha razão o Trimegisto quando chamou o homem de grande milagre.”[3]

Nos séculos subsequentes, o trabalho de Descartes produz duas consequências: por uma parte a do progresso da ciência – que estuda a natureza mais além dos sentidos – e por outra parte o desenvolvimento da filosofia especulativa que busca a “verdade” na abstração metafísica. Se desenvolve neste período a ideia da passividade da consciência frente ao mundo, concepção na qual o homem é uma entidade que actua em resposta aos estímulos do mundo natural. Até as correntes historicistas – que previlegiam o activismo e a transformação do mundo – concebem a actividade humana como o resultado de condições externas à consciência.

Hoje re-aparecem estes velhos prejuizos e tratam de impor-se com um novo disfarce, o do neo-darwinismo social, cujas características distintivas são a da luta pela sobrevivência e a selecção natural que previlegia ao mais forte. Na sua versão mais recente, esta concepção zoológica transplantada ao mundo humano, sostém uma dialética baseada em leis económicas naturais que auto-regulariam toda a actividade social. Assim, uma vez mais o ser humano concreto desaparece a nossos olhos e fica transformado em coisa. [4]

Apenas no século XX, Husserl, com o seu método fenomenológico, junto aos filósofos da existência e de algumas correntes da antropologia cultural, tratam de recuperar o concreto da existência humana.

Aparecem também as primeiras formulações do assim chamado “princípio antrópico” nas ciências físicas, que constitui um momento crucial, ao menos como tentativa, na interpretação científica do mundo e do ser humano.

Podemos então observar como se foi passando duma concepção de ser humano submetido a leis da natureza, a um ser humano que hoje se ergue por cima do natural. Um transcorrer histórico que vai da explicação mágica e alegórica dos acontecimentos à explicação científica, apesar de que esta se encontra ainda prisioneira das limitações do positivismo. Mas ainda fica uma última fronteira por eliminar: a concepção da morte, que se eleva como um muro infranqueável no futuro de todo o indivíduo.

Para o Humanismo Universalista é essencial – a fim de assentar os fundamentos duma nova civilização – que se modifique substancialmente a visão que o ser humano tem de si mesmo e da sua posição no cosmos. À luz duma nova cognição, é necessário superar as antigas concepções, que já resultam insustentáveis e contraditórias tanto para os especialistas de todos os campos como para o homem comum e cotidiano.

Baseando-se na experiência directa que cada um de nós pode ter de si mesmo, o Humanismo Universalista reconhece no ser humano as características fundamentais que o levam em direcção ao futuro e que lhe permitiram chegar até aqui: a intenção constante de superar a dor e o sofrimento, e a possibilidade que tem a consciência de fazê-lo em grande liberdade.

O primeiro que podemos observar é que a consciência é activa, no sentido de que não é nenhuma espécie de recipiente no qual se recolhem as coisas que sucedem no mundo, não é um simples “reflexo” do mundo.

A consciência possui a capacidade de estruturar o mundo segundo a sua intenção, uma direcção precisa. Portanto, observamos que, para a consciência, o mundo se constitui de modo intencional e não reflexo, e que esse mundo é passível de transformação na medida em que tal consciência “intenciona” a sua construção.

Nesta primeira observação, a consciência descobre de si mesmo que é capaz de inventar o mundo apartir, sim, de elementos condicionantes – como por exemplo a memória – mas com uma capacidade de futurização que não se encontra em nenhuma outra espécie animal. Não nos encontramos frente a um simples “animal racional”, capaz de socializar e de comunciar, mas sim ante um ser que encontra em si mesmo a possibilidaed de imaginar e de construir o futuro, humanizando o mundo, é dizer, construíndo-o segundo a sua intenção.

Aqui encontramos os dois elementos essenciais numa concepção do ser humano que sirva de fundamento para uma nova civilização: o desenvolvimento da liberdade e da temporalidade.

Devemos considerar além disso que o mundo não aparece “separado” da consciência, mas sim que ambos são parte da mesma estrutura em relação dinâmica constante: enquanto a consciência é constituída por um mundo em contínua transformação, ela, - a sua vez – constitui o mundo, transformando-o.

Nos damos conta de que, enquanto para o animal o ambiente é um ambiente natural, para o ser humano o ambiente é histórico-social e que ele é também reflexão sobre tal ambiente e contribuição à transformação ou à conservação do mesmo.

Esta concepção não tem muito a ver com aquela de consciência passiva, submetida a uma “natureza” externa a si. Se trata antes duma consciência criadora e transformadora, aberta ao mundo, activa, intencional e lançada em direcção ao futuro. Neste sentido, se temos que falar de natureza com referência ao ser humano, falaremos de mudança e transformação.

Certamente o mundo dum homem primitivo, dum homem medieval, ou simplesmente dum homem do século passado, não é o mesmo mundo do homem actual. A transformação do mundo sucede em cada instante e de modo sempre evolutivo, e nada tem que ver com o ser humano as teorias segundo as quais as “leis naturais” da história ou da economia impõem um esquema de comportamento, uma espécie de darwinismo social modernizado.

Pudemos ver como a consciência constitui o mundo em base a uma intenção, futurizando continuamente novas possibilidades. Agora compreendemos também que tal intenção possui sempre uma direcção orientada ao que podemos chamar de “felicidade”. E o que é esta direcção senão precisamente a superação da dor e do sofrimento?

A dor é o que padece o corpo e a ciência, com a sua evolução milenária, sempre tratou de eliminá-la. É uma direcção clara, a da ciência, e não podemos deixar-nos distrair pela sua actual aplicação ao serviço da destruição, sem deixar de observar que nela o ser humano pode plasmar a sua intenção de superação da dor.

O sofrimento, pelo contrário, se refere à mente e a tudo o que cria contradição no psiquismo humano. O medo ao futuro, a impossibilidade de escolher, a falta de liberdade, a violência, o ressentimento e, em definitiva, a ausência dum sentido profundo na vida.

A superação do sofrimento mental não gozou dos mesmos progressos que a ciência, mas são inegáveis as inúmeras tentativas do ser humano em dar significado a sua existência. Assim descobrimos que todas as civilizações desenvolveram os seus próprios sistemas de pensamento, as suas cosmologias, as suas místicas, nas quais os seres humanos se reconheciam pessoal- e socialmente.

É precisamente nesta tendência, orientada a superar o sofrimento, que encontramos a capacidade da consciência de reflectir sobre si mesma e de superar os seus próprios limites. É pela compreensão dos limites que a condicionam que a consciência pode aceder às profundidades insondáveis da Mente e ter experiências que vão mais além da mecanicidade do psiquismo. Experiências que em tantos momentos da história contribuiram de modo substancial ao progresso em relação à superação do sofrimento e da evolução do conhecimento. De feito, não obstante a sua aparente inconsistência do ponto de vista do pensamento racionalista, são precisamente estas experiências que deram sentido e significado às pessoas e povos.

Talvez a nossa tarefa aqui é justamente assinalar as bases para o novo salta evolutivo que o ser humano precisa, seguindo a direcção que já está traçada em nossa consciência.

Se a consciência humana é capaz de futurizar graças a sua enorme amplitude temporal, e se a intencionalidade permite projectar um sentido, um significado fora de si, então a característica fundamental do homem é a de ser e construir o sentido do mundo.

Para concluir me permito citar uma frase do livro Humanizar a Terra de Silo:

“Nomeador de mil nomes, fazedor de sentido, transformador do mundo... os teus pais e os pais dos teus pais continuam-se em ti. Não és um bólido que cai, mas sim uma brilhante seta que voa em direcção aos céus. És o sentido do mundo e quando aclaras o teu sentido, iluminas a terra. Quando perdes o teu sentido, a terra escurece-se e abre-se o abismo. Dir-te-ei qual é o sentido da tua vida aqui: humanizar a Terra! O que é humanizar a Terra? É superar a dor e o sofrimento, é aprender sem limite, é amar a realidade que constróis. Não posso pedir-te que vás mais além, mas também não será ultrajante que eu afirme: "Ama a realidade que constróis e nem mesmo a morte deterá o teu vôo!"[5]

 


[1] Fulvio de Vita é membro da Equipa Coordenadora Mundial do Centro Mundial de Estudos Humanistas. Participa no Centro de Estudos Humanistas “Salvatore Puledda” de Roma, fundado em 2005. A sua área de investigação são os fenómenos sociais em épocas de crise e o aumento da religiosidade.
Foi um dos fundadores em Itália em 1982 da “La Comunità per lo Sviluppo Umano”, uma associação sócio-cultural que trabalha desde os inícios na difusão e profundização da Não-violência.
Desenvolveu estudos sobre Direitos Humanos, Solidariedade Social, Democracia Real e Meios de comunicação dentro do Departamento de Comunicação Social da mesma associação.
Em 1989 participou na equipa organizadora da Primeira Internacional Humanista em Florença.
Acutualmente colabora coma a associação Pangea da Itália e da Espanha, para a produção de documentários históricos acerca do desenvolvimento do conhecimento e do pensamento na história humana.
[2] Salvatore Pulleda, Interpretações históricas do Humanismo.
[3] M. Ficino: Theologia platonica de immortalitate animorum, XIV, 3.
[4] Silo, Diccionario del Nuevo Humanismo (Ser Humano), Obras Completas Vol. II.
[5] Silo, Humanizar la Tierra, Obras Completas Vol. I
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